sábado, 3 de outubro de 2009

Uma Guerra Perdida

Quando se reunir, em março de 2009, em Viena, para a revisão de dez anos da política global de drogas, a ONU vai encarar um dilema: ou admite que a meta de eliminar ou reduzir drasticamente a produção e o consumo, alcançando uma sociedade “livre de drogas” (estabelecida em 1998), fracassou; ou fecha os olhos para a realidade — consumo e produção aumentaram, bem como a violência associada ao tráfico — e mantém a orientação atual, de criminalização do usuário, a reboque da chamada Guerra das Drogas, liderada pelos Estados Unidos. País que, após mais de 30 anos desta política, se vê na condição de primeiro destino de produção de cocaína e um dos líderes de produção de maconha. Estimado em US$ 322 bilhões anuais, o mercado global de drogas mede forças com a indústria farmacêutica e consome ao menos um terço disso nas estratégias de combate.
— O consenso em Washington é de que a política fracassou, mas não se deve mudá-la ou discuti-la. O debate se “macartiza” — alerta o venezuelano Moisés Naim, diretor da revista americana “Foreign Policy” e autor do livro “Ilícito”, traduzido para 18 idiomas. Ele mediou, semana passada, em Bogotá, a segunda reunião da Comissão Latino-Americana Sobre Drogas e Democracia, criada este ano. O grupo, liderado pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, César Gavíria (Colômbia) e Ernesto Zedillo (México), e composto por membros da sociedade civil, tem por meta apresentar um relatório alternativo.
— O fracasso é inequívoco, a despeito dos enormes custos humanos e financeiros. Estimular novas percepções e atitudes em relação a um tema tão cercado de tabus é um desafio social e cultural de grande magnitude — avalia Fernando Henrique, fundador da comissão. O cientista político holandês Martin Jelsma, do Transnational Institute (TNI), dá uma idéia das dificuldades a serem enfrentadas:
— O relatório preliminar da ONU já esconde as falhas atrás de uma má lição de História: em vez de analisar as metas de dez anos, volta cem anos no tempo e compara a produção de ópio na China no início do século XX com a atual.


Legalizar o pensamento
Da conferência de Bogotá emerge um consenso: as políticas européias, focadas em descriminalização do consumo, penas proporcionais, tratamento diferenciado de viciados e usuários leves, são modelos bem mais produtivos que a orientação da ONU e a política americana.
— Mas falta a esses programas o foco social que uma proposta latino-americana pode trazer — argumenta o antropólogo Rubem Cesar Fernandes, do Viva Rio, ligado à comissão. Da idéia partilham não só militantes de ONGs e sociólogos, mas perfis executivos como o economista colombiano Rafael Pardo Rueda, assessor de Segurança Nacional no período da captura de Pablo Escobar, e pré-candidato à Presidência:
— O caminho é a regulação, mesmo que ainda não exista um projeto global nesse sentido. Isso não significa dizer que as drogas são boas, e sim ganhar controle sobre elas — opina.
— Em grandes cidades afetadas pelas drogas, dependentes e traficantes são vistos com o mesmo grau de intolerância. Uma grave distorção — reflete o filósofo e ex-prefeito de Bogotá Antanas Mockus, escolado em violência urbana. Abordagens flexíveis se espalham pelo mundo. Em Portugal, a posse de drogas não entra mais no sistema judicial. A população carcerária caiu, bem como os óbitos. Na maioria dos países europeus as infrações para quantidades pequenas de maconha (até 30g) não são processadas. Brasil e Colômbia já experimentam, timidamente, a descriminalização, sem que, contudo, se invista numa compreensão maior do ethos do vício. Pequenos cultivos de folha de coca na Bolívia são diferenciados dos celeiros do tráfico, e programas de reinserção têm sucesso em Medellín e Cáli, reduzindo as taxas de homicídios. Idéias de regulação dos mercados ganham corpo, e não é de hoje: Milton Friedman, um dos mais influentes pensadores liberais do século passado, falecido em 2006, liderou uma lista de 500 economistas americanos em apoio a estudos de Harvard sobre os altos custos da proibição de maconha, que indicavam, em caso de liberação, um ganho potencial de US$ 7,7 bilhões/ano e de U$ 6,2 bilhões anuais em taxas, a serem investidos em saúde pública, num modelo semelhante ao do tabaco.
— O Ocidente domesticou o álcool e os cigarros. Com as demais drogas é difícil: por muito tempo, elas foram usadas por grupos vistos como socialmente ou até etnicamente inferiores — analisa o economista
colombiano Francisco Thoumi. Concretamente, a discussão saiu do subterrâneo e a reflexão começa a deixar de ser tabu. Para que, amanhã, não se empunhem cartazes clamando pela “legalização do pensamento”.

Alguns dados
• Nos anos 70, os EUA declararam guerra às drogas. Em 1998,a ONU preconizou “um mundo livre de drogas”
• Desde então,o consumo de maconha e cocaína na América Latina mais que triplicou
• O plantio de coca aumentou de 160 mil hectares a mais de 200 mil e a produção cresceu 20%, apesar das políticas de erradicação. As margens de lucro superam os prejuízos
• O crime organizado associado às drogas continua a se expandir e se sofisticar, corrompendo os poderes e ameaçando a democracia
• O total de usuários regulares de drogas no mundo é estimado em 200 milhões de pessoas
• A maconha é a droga mais consumida (160 milhões), embora o percentual de uso problemático seja reduzido. Anfetaminas e ecstasy já superam cocaína e heroína
• Investe-se muito mais em repressão ao consumo e encarceramento que em prevenção, tratamento, redução de demanda e campanhas educativas
• Com 5% da população mundial, os EUA têm 25% da população prisional do planeta, sendo que meio milhão (1/4) relacionado a drogas
• Ao mesmo tempo, os EUA atingiram a auto-suficiência em produção de maconha para uso doméstico
• A política proibicionista marginalizou indistintamente usuários eventuais e crônicos, de drogas leves ou pesadas, dificultou a abordagem na escola, na igreja e na família, penalizando as classes pobres
• A Europa vem priorizando redução de danos, descriminalização do consumo, distribuição de seringas, tratamento obrigatório de viciados e criação de penas alternativas
• Em países da América Latina como Brasil e Colômbia, uso e posse de pequenas quantidades vêm sendo despenalizados
• Cresce o pensamento com foco nos direitos humanos, no respeito a culturas ancestrais, aos pequenos agricultorers, a modos de cultivo alternativos e programas de reinserção
• Teóricos americanos ultraliberais defendem a legalização de produção, distribuição, venda e uso de todas as drogas
• Os mais moderados defendem a regulamentação da maconha e controle semelhante ao hoje exercido, com sucesso, sobre o uso do álcool e do tabaco
• Teses regulatórias prevêem, através de impostos, migração do capital da droga para campanhas educativas, implemento do controle, inteligência, pesquisa e saúde pública
• Na Califórnia a produção e distribuição de maconha para uso médico já é taxada
• A proibição do álcool entre 1919 e 1933 nos EUA aumentou o consumo e gerou crime e violência, fazendo a glória de vultos como Al Capone. Constatado o fracasso, a emenda foi revogada
• Sete vezes maior que o da maconha, o uso do tabaco cai e o fumo se torna anti-social sem necessidade de repressão ou encarceramento

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